No episódio desta semana falamos sobre a ascensão da ultradireita na Europa. Para nos guiar nesta discussão, contamos com a participação especial de Vinícius Bivar, doutorando em História Contemporânea pela Universidade Livre de Berlim. Vinícius nos oferece uma análise profunda sobre como a ultradireita evoluiu desde a Segunda Guerra Mundial, destacando as diferentes “ondas” de crescimento deste movimento até chegarmos à fase atual. Discutimos como crises econômicas e políticas, como a crise de 2008 e a pandemia de coronavírus, foram aproveitadas por esses movimentos para ganhar relevância.
A conversa também aborda temas como a política de memória e a responsabilidade histórica, especialmente na Alemanha Oriental, e como esses fatores influenciam a popularidade da ultradireita. Exploramos exemplos concretos de países como Alemanha, França e Itália, analisando os recentes resultados das eleições para o Parlamento Europeu e o papel dos partidos de extrema-direita. Aperte o play!
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Participaram deste episódio: Filipe Mendonça e Vinícius Bivar.
Capa do episódio: AP
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Ascensão da ultradireita na Europa
Transcrição do episódio com Vinícius Bivar
[00:00:00] Filipe Mendonça: Seja bem-vindo e seja bem-vinda a mais uma edição do Chutando a Escada. Aqui é Filipe Mendonça e hoje vamos explorar temas fundamentais sobre a ascensão da ultradireita na Europa e as suas influências históricas. Para isso, a gente recebe aqui o Vinícius Bivar.
[00:00:15] Vinícius Bivar: Bom, eu sou o Vinícius Bivar, eu sou doutorando em História Contemporânea pela Universidade Livre de Berlim. Me graduei em História aqui no Brasil, na UNB, e fiz meu mestrado em Estudos Europeus Contemporâneos. Já há algum tempo me dedico ao estudo da Europa, mas focado na questão da história. Mais recentemente, desenvolvi um projeto auxiliar de olhar também para a extrema-direita e para a ultradireita contemporânea, com foco tanto na Europa, mas também, obviamente, dialogando com o Brasil.
[00:00:46] Filipe Mendonça: Eu recomendo que vocês fiquem até o final, porque a conversa está demais. O Vinícius vai falar sobre a ascensão da extrema-direita em países como França, Alemanha e Itália, nas recentes eleições agora para o Parlamento Europeu. Ele também menciona como esses movimentos se aproveitaram das crises econômicas e políticas para ganhar relevância, utilizando, por exemplo, temas como antimigração e islamofobia.
Vinícius vai falar para a gente um pouquinho também sobre política de memória e responsabilização do passado nazista e como isso influencia atualmente a popularidade da extrema-direita, principalmente em uma parte específica da Alemanha. Ele conta sobre a complexidade de todo o cenário eleitoral europeu, mencionando, entre outras coisas, como as eleições europeias podem funcionar como uma espécie de termômetro ou referendo de ocasião, mobilizando votos de protesto.
Também discutimos sobre a AfD, que é a Alternativa para a Alemanha, e a estratégia de normalização desses partidos, além da tensão entre o sentimento eurocético e a participação nas instituições europeias. Vale cada minuto, fique até o final. Se puder ajudar o Chutando a Escada, há um jeito muito fácil: compartilhe com seu amigo, dê cinco estrelas no seu agregador favorito, isso ajuda demais. Então, sem mais delongas, vamos para o papo. Com vocês, Vinícius Bivar, falando sobre a ascensão da ultradireita na Europa.
[00:02:33] Filipe Mendonça: Vamos começar pelo início. Todo mundo está falando sobre as eleições para o parlamento europeu, alguns dizendo que foi um resultado esperado, outros dizendo que foi mais ou menos esperado, com variações dependendo do país. Quando se fala de crescimento da extrema-direita, acho que está muito concentrado na França e na Alemanha, mas a Itália também teve um resultado um pouco surpreendente. É bem sabido que vocês, que estudam extrema-direita, estão falando disso já há muito tempo, que esse é um cenário preocupante, que é uma quadra histórica complicada. A bibliografia sobre o tema se divide em alguns momentos: desde a Segunda Guerra Mundial você tem um contínuo crescimento de movimentos de extrema-direita, que dependem da conjuntura e também consideram novos tipos de crise, novos tipos de comércio, e novas pressões no emprego. A extrema-direita no mundo se altera. Levantando essa bola para você, explique para a gente um pouquinho como vocês historiadores especialistas no tema, organizam esse movimento de crescimento da extrema-direita logo após a sua maior derrota, que foi a Segunda Guerra Mundial.
[00:03:54] Vinícius Bivar: Vamos lá, então. Essa divisão em diferentes momentos, ou diferentes ondas, como por vezes esse fenômeno é referido na literatura, acabou se popularizando na última década através dos trabalhos do politólogo neerlandês Cas Mudde. Ele é uma das pessoas que partilha dessa visão de que existem ondas, diferentes momentos de ascensão de diferentes grupos de extrema-direita ao longo da segunda metade do século XX e das primeiras duas décadas do século XXI.
O século XX teria essencialmente três momentos. Um primeiro momento vai de 1945 até 1955, que é o que ele chama de momento neofascista. São organizações essencialmente que derivam sua existência e ideologia diretamente do fascismo histórico e do nazismo, buscando revitalizar ou refundar partidos de cunho fascista e nazista, principalmente na Europa.
[00:04:52] Filipe Mendonça: Isso em um contexto de criminalização…
[00:04:57] Vinícius Bivar: Sim, entre 1945 e 1955, é um momento onde está ocorrendo, por exemplo, a política de desnazificação na Alemanha, com uma série de medidas sendo levadas a cabo na Europa, no sentido de desmantelar as organizações que fundamentaram os regimes nazistas na Europa durante a década de 30, principalmente no período entreguerras. O segundo momento seria o que o que Cas Mudde classifica como o momento do populismo de direita.
A partir daí surgem partidos como o Front National, de Jean-Marie Le Pen, que é considerado uma espécie de expoente desse momento. Esse é um período que vai de 1955 até mais ou menos 1980. Esse é o período, digamos assim, áureo da incorporação desse elemento populista à política de direita no contexto político europeu.
A partir desse momento, sobretudo entre a década de 80 e os anos 2000, temos o que seria a terceira onda da ultradireita, que é a ascensão de partidos de direita radical. Entre os exemplos que podemos citar estão os democratas suecos e o Partido da Liberdade Austríaco, que são partidos que estão ativos até hoje, assim como o Front National. Esses partidos buscaram incorporar elementos do fascismo e do nazismo histórico, mas com um verniz, de certa forma, radicalizado ou menos extremista. Abandonaram, por exemplo, o uso da violência, passaram a disputar eleições, utilizando as instituições democráticas como forma preferencial de chegada ao poder, contrastando com movimentos neofascistas que buscavam a chegada ao poder por meio da violência. Essa seria a distinção que Cas Mudde também faz entre esses diferentes movimentos.
A partir dos anos 2000 até o presente, estamos vivendo o que Cas Mudde classifica como a quarta onda da extrema-direita. Algo que começa nos anos 2000, mas que ganha força, sobretudo, a partir da crise de 2008, onde você começa a ter ascensão de movimentos, como no caso da Alemanha, o PEGIDA, o próprio AfD criado nesse contexto, ali em 2011. A crise econômica de 2008 teve seu auge entre 2011 e 2012, e observamos o início desse processo de normalização, o que se chama na literatura de mainstreaming.
Essa é uma das características fundamentais dessa quarta onda, além de sua heterogeneidade. É importante, claro, para o ouvinte, que essas ondas não são excludentes, essa é só uma ferramenta analítica que usamos para sistematizar nossa compreensão a respeito desses diferentes momentos. Mas, assim, o momento populista de direita não significa necessariamente que o neofascismo deixou de existir, e o momento de direita radical não necessariamente significa que o populismo de direita deixou de existir. Pelo contrário, todos esses movimentos de direita surgiram e ganharam força ao longo da segunda metade do século XX, e acabam se aproveitando desse contexto.
Desde 2008, o 11 de setembro também foi importante, e mais recentemente, em 2015, a crise dos refugiados, principalmente afegãos e sírios chegando à Europa, e mais recentemente a guerra da Ucrânia. Esses momentos vão contribuir para recatalisar, de alguma forma, a ascensão desses grupos diversos. Justamente essa heterogeneidade que caracteriza essa quarta onda contribui com esse processo de mainstreaming, com a normalização de ideias que até então eram consideradas radicais ou extremistas e que passam a fazer parte do debate político como ideias consideradas aceitáveis por uma parcela do eleitorado em países como a Alemanha, França e Itália.
[00:09:09] Filipe Mendonça: Nessa quarta onda que você menciona, estamos no século XXI. Você citou vários eventos históricos: o 11 de setembro, a política contra o terror, a crise financeira de 2008 que derrubou boa parte das economias europeias, e logo depois, principalmente na periferia da Europa, houve uma crise. A imprensa usava um termo pejorativo até para se referir a alguns países, que eram os PIIGS: Portugal…
[00:09:44] Vinícius Bivar: Irlanda…
[00:09:46] Filipe Mendonça: Grécia, e a Espanha. Acho que tinha mais um, mas não me lembro. Então, recapitulando, PIIGS, com o I dobrado, é um acrônimo para fazer referência a cinco países: Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha.
[00:10:07] Vinícius Bivar: Isso mesmo,o I era dobrado.
[00:10:10] Filipe Mendonça: Então, um pouco o rescaldo da crise de 2008. Você citou depois a crise dos refugiados em 2014, e um ano antes tivemos a crise na Crimeia que escalou para a atual guerra da Ucrânia. Dentro de um contexto de pressão em cima de uma classe média que a literatura chama de derrotados da globalização, esse público começa a não se ver representado na democracia liberal e começa a buscar alternativas?
[00:10:43] Vinícius Bivar: Seguramente, esse é um dos elementos estruturais que acabam favorecendo esse processo de crescimento da extrema-direita que observamos na última década, principalmente. A questão do 11 de setembro vai ter, por exemplo, um papel relevante na construção ideológica de partidos como a AfD, na medida em que fundamenta o argumento anti-islamização do Ocidente. Inclusive, existe um movimento que surge junto com a AfD, o PEGIDA, que é uma sigla em alemão que designa os Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente. O 11 de setembro e todo o imaginário criado em torno da imigração muçulmana para a Europa acabam bebendo de eventos como a guerra ao terror para fundamentar essa ideologia xenófoba baseada na discriminação das populações muçulmanas que residem na Europa. Da mesma forma, a crise econômica e, posteriormente, a crise dos refugiados de 2015 vão contribuir justamente com a acentuação da relevância do debate imigratório e a instrumentalização que esses partidos fazem da questão da imigração, que se converte em uma pauta central de partidos como o Fratelli d’Italia da Meloni, o Front National da Marine Le Pen e o AfD na Alemanha.
Todos esses partidos acabam se estruturando e angariando muito apoio a partir do discurso anti-imigração. Tanto que a relevância desse tema para esses partidos é tão grande que, no momento, por exemplo, em que temos a pandemia do coronavírus e esse debate perde espaço dentro do debate público europeu, esses partidos acabam minguando. Entre 2019 e 2021, houve um período de diminuição da influência desses partidos tanto no debate público quanto eleitoralmente. A partir do momento em que a pandemia deixa de ser o debate central e temáticas relacionadas, por exemplo, à inflação, à economia e à questão migratória retornam ao debate público europeu, esses partidos têm, novamente, uma espécie de ressurgimento da sua influência, que é essencialmente o que estamos observando agora no contexto das eleições europeias.
A própria AfD teve uma ascensão meteórica nos últimos anos a ponto de se converter, o que foi confirmado no contexto das eleições europeias, na segunda força na política nacional alemã. Existe a expectativa de que isso se replique também em uma eventual futura eleição nacional, já que o governo de Olaf Scholz e a coalizão que o apoia, que envolve tanto os liberais quanto o Partido Verde, está extremamente fragilizada neste momento. É muito provável que tenhamos um retorno da CDU, que governou durante muitos anos na era Merkel, como um dos principais elementos de propaganda dos democratas cristãos alemães para defender um retorno ao poder. E é possível que a AfD se converta nesse contexto na segunda força. Veremos como os partidos tradicionais vão responder a essa ascensão da AfD. Até o momento tem funcionado a filosofia do cordão sanitário, ou do firewall, como é chamada na Europa. A ideia é de que os partidos tradicionais não se coliguem com a extrema-direita e não aceitem formar governo com a extrema-direita, preferindo soluções alternativas.
O próprio Olaf Scholz se viu obrigado a formar uma coalizão que envolve dois partidos com visões de mundo bastante distintas, os liberais e o Partido Verde, justamente como uma forma de evitar a necessidade de incorporar a AfD, que já havia crescido substancialmente na última eleição parlamentar na Alemanha, ao governo. Então, já observamos uma fragmentação de coalizões de governo na Alemanha como resultado desse crescimento da extrema-direita e da maior presença da extrema-direita no parlamento alemão.
[00:15:19] Filipe Mendonça: Você tocou em muitas coisas interessantes. Antes, deixa eu dar um passo atrás, até para a gente não perder o fio condutor. Pensando em termos mais amplos, o que esses partidos defendem? A palavra que você usou foi diversidade. São bandeiras que podem variar dependendo da localidade, meio que uma estrutura que sofre mutações dependendo do país e da época. E como essa quadra histórica, essa quarta onda, tem essa especificidade: crise da democracia liberal, guerra na Europa, a maior guerra desde a Segunda Guerra Mundial, uma pressão sobre a classe média, que é o que chamamos de derrotados da globalização. Mas, por outro lado, há algumas coisas que você falou que unem os diferentes partidos europeus nesse campo da extrema-direita. Você citou bastante a ideia de anti-imigração, xenofobia. Eu não entendi bem a pauta verde, acho que é uma crítica em relação a isso.
[00:16:25] Vinícius Bivar: A pauta do meio ambiente acabou se tornando um dos pontos de convergência de diversos movimentos de extrema-direita nos últimos anos, acentuada pela crise energética gerada pela guerra da Ucrânia. No caso alemão, por exemplo, a dependência do gás russo como relevante na matriz energética alemã acabou levando a um aumento expressivo na inflação nos últimos anos. Isso gerou uma resposta, uma reação contra a pauta ambiental, associada também a uma certa posição pró-russa, a ideia de que seria melhor para a Alemanha fazer concessões à Rússia, permitir que a Rússia tomasse a Ucrânia, para que a Alemanha continuasse a ter acesso ao gás russo barato, financiando seu desenvolvimento econômico. Essa foi a base dos anos de prosperidade que a Alemanha viveu, sobretudo no século XXI. Esse alerta já era feito, principalmente por países do sul da Europa, em relação à dependência que se criava do gás barato vindo da Rússia durante o governo Merkel. Adotou-se uma postura cética em relação à possibilidade de que algo como a guerra da Ucrânia pudesse acontecer, mas infelizmente ocorreu, gerando um impacto na inflação e no preço da energia, e um impacto na indústria alemã, que ainda é intensiva no uso de energia.
Então, temos a indústria química, metalurgia, são segmentos que demandam muita energia. Isso teve um impacto econômico instrumentalizado pela extrema-direita para angariar apoio, associado à questão do discurso pró-Rússia, a ideia de que a guerra da Ucrânia não é problema da Alemanha, que a Alemanha tem que buscar defender sua segurança energética em detrimento de qualquer ameaça que a Rússia possa representar.
[00:18:32] Filipe Mendonça: Esse ponto é muito interessante, porque veja como a história é complexa e dá voltas. O que você está dizendo é que, de certo modo, esses grupos de extrema-direita caminham em direção contrária ao que os regimes internacionais de meio ambiente estão dizendo, um certo negacionismo climático, acho podemos colocar nesses termos. E isso chega ao ponto de alguns partidos se tornarem anti-guerra. Nessa conjuntura específica, então, é correto dizer que a extrema-direita cresceu na Europa ao mesmo tempo em que o discurso anti-guerra também cresceu.
[00:19:21] Vinícius Bivar: É muito curioso. Não me recordo exatamente quem foi, mas assisti a uma entrevista sobre esse tema hoje, e algum especialista comentou que todos os partidos da Europa querem a paz. Os caminhos pelos quais esses partidos buscam a paz são essencialmente diferentes. Você tem uma postura mais tradicional, incorporada inclusive por alguns partidos, como o caso de Giorgia Meloni e do Fratelli d’Italia, que têm uma postura pró-OTAN, vendo mérito na ideia de armar a Ucrânia para que ela possa se defender contra a Rússia. Inclusive, distoando do discurso de Marine Le Pen ou da própria AfD, que adotam uma postura próxima de um interesse russo, argumentando que isso não seria problema da Alemanha ou da França, que essa guerra é uma questão interna, doméstica, entre a Ucrânia e a Rússia, e que não seria do interesse da Alemanha, por exemplo, se envolver nesse conflito. Seria interessante para a Alemanha, pelo contrário, permitir que a Rússia faça o que quiser na Ucrânia, desde que o suprimento de gás continue. Durante parte dessas últimas duas décadas, sustentou o crescimento econômico da indústria alemã, principalmente a parte mais tradicional da indústria alemã, que é intensiva em energia. Então, nesse sentido, também existe uma postura por parte desses partidos favorável a uma solução para esse conflito, mas uma solução muito diferente daquela proposta pelas instituições europeias e por alguns partidos associados a esse grupo de ultradireita, como o Fratelli d’Italia da Meloni.
[00:21:04] Filipe Mendonça: Interessante e trágico. Às vezes, é um curto-circuito, porque, por conta da nossa experiência com a extrema-direita no Brasil que é uma extrema-direita beligerante, no sentido de que tem uma postura mais engajada, de agressividade. No caso alemão especificamente, a centro-direita ou a centro-esquerda na guerra da Ucrânia têm uma postura mais incisiva no sentido de enviar armas, prolongando a guerra, mais do que a extrema-direita, que tende a construir uma solução mais pró-Rússia. Inclusive, não estou defendendo esse caminho, obviamente, porque é um problema às avessas. Acho que resolve um problema e cria outro.
Ainda nesse tema, quero aproveitar, já que temos um especialista em Alemanha aqui, para perguntar sobre a Alternativa para a Alemanha. Sou um completo leigo, como você já percebeu. O ouvinte aqui já me conhece, sabe que faço perguntas elementares. A gente lê “extrema-direita”, alguns vão dar um passo adiante e falam “não, é um partido neonazista”… na Alemanha, que a princípio é o lugar onde mais se condena essa experiência. Então, fico sem entender qual a capilaridade que isso tem na sociedade alemã, se há relação orgânica com a sociedade alemã.
[00:22:44] Vinícius Bivar: Vamos lá, então. A AfD, como a própria ultradireita de maneira geral, também passou por vários momentos. Ela começa em 2012, 2013, como um partido eurocético, não contra a União Europeia como instituição, mas contra a zona do euro. Havia a argumentação do potencial fim do euro e retorno ao marco alemão. Essa era essencialmente a pauta do partido na sua origem. Ao longo dessa última década, principalmente nos anos 2010, o partido passa por um processo de radicalização. São criadas algumas alas, a partir da incorporação de diferentes movimentos, sobretudo nos novos estados federais, que foram incorporados à Alemanha após a unificação. O que ocorre é um processo paulatino de radicalização. Uma das alas do partido, a Der Flügel (a asa), é comandada por um professor de história, curiosamente, o Bjorn Höcke, que é extremamente popular nos estados da antiga Alemanha Oriental, principalmente na Turíngia. Esse indivíduo é essencialmente quem conduz, juntamente com essa ala do partido, esse processo de radicalização, inclusive incorporando elementos do neonazismo ao seu discurso. O caso mais recente envolveu um membro do Parlamento Europeu da AfD, Maximilian Krah, que em uma entrevista disse que nem todos aqueles que vestiam o uniforme da SS eram criminosos.
Foi justamente a partir dessa declaração que surgiu a celeuma envolvendo o Identidade e Democracia, o grupo parlamentar da FN, e a AfD acabou expulsa desse grupo parlamentar e hoje integra uma ala dentro do Parlamento Europeu independente, que não está vinculada ou associada a nenhum desses grupos mais amplos, suprapartidários, com base nos quais o Parlamento Europeu se organiza. Então, a AfD passou por esse processo de radicalização ao longo da década. Essa ala do partido é monitorada pela Agência de Proteção da Constituição, que é um órgão do judiciário alemão que monitora organizações classificadas como extremistas ou potencialmente extremistas. E o Bjorn Höcke também é uma figura monitorada nesse contexto, justamente pela potencial associação que ele tem com grupos neonazistas, em sentido estrito.
A AfD joga com essa associação ao neonazismo a todo momento, justamente porque uma eventual classificação, sobretudo no caso concreto da Alemanha, da AfD como organização extremista levaria ao banimento do partido. Então, para que o partido continue ativo, ele dialoga com essas idas e vindas, esses rompantes neonazistas misturados a uma tentativa de distanciamento. A dinâmica do discurso do partido se estrutura a partir desse diálogo. Uma sinalização e uma aproximação com movimentos neonazistas, como o NPD, que é um partido abertamente neonazista. Inclusive mudou de nome recentemente, passando a se chamar Heimat, que significa “nação” ou “pátria” em alemão. Então, ocorre essa sinalização, mas ao mesmo tempo, a partir do momento em que surge um escândalo como o de Maximilian Krah ou outros escândalos envolvendo Bjorn Höcke, o partido busca se distanciar dessa associação, dizendo: “Não, veja bem, não é isso que nós defendemos. Nós somos um partido que opera dentro das regras do jogo democrático, que participa de eleições, que procura chegar ao poder através da vontade da maioria e não por meio da violência”, buscando criar esse distanciamento. Ainda assim, a todo momento sinalizando para esses grupos mais radicalizados, especialmente neonazistas, tentando atrair o voto dessa população que durante muito tempo, inclusive, não votava.
A AfD se beneficiou muito de indivíduos desengajados politicamente, que enxergaram na AfD uma representação da sua visão de mundo, uma visão de mundo extremista em muitos casos, e que acabaram sendo trazidos de volta à participação política, em larga medida sustentando esse processo de ascensão, sobretudo no início da AfD, ao longo da última década. Então, a AfD joga com essa dicotomia: ao mesmo tempo que sinaliza para esses movimentos e busca atrair esses movimentos para perto do partido, surge uma potencial acusação, um potencial escândalo, e o partido procura se distanciar desse passado nazista. E aí há questões mais complexas que envolvem a AfD e o passado nazista, relacionadas, por exemplo, a políticas de memória. Esse é um dos argumentos que pretendo investigar mais a fundo. Alguns artigos já ventilaram essa possibilidade, mas acredito que um dos elementos, para além daqueles já consagrados, é o fato de que existe um déficit em termos de desenvolvimento econômico entre os estados da antiga Alemanha Oriental e os estados da antiga Alemanha Ocidental. O fato de que os próprios cidadãos da antiga Alemanha Oriental se enxergam como cidadãos de segunda classe na Alemanha Unificada. Esses elementos fazem parte da explicação para o papel preponderante que a AfD teve, inclusive agora nas eleições europeias, sendo o partido mais votado em boa parte desses estados.
Todos esses elementos contribuem para essa explicação do porquê a AfD é tão popular, mas eu diria, e aí como historiador acrescento esse elemento adicional, que existe também uma diferença em relação à política de memória e como o nazismo é lembrado no estado da antiga Alemanha Oriental em comparação com os estados da antiga Alemanha Ocidental. Não existe a relação de responsabilização, o sentimento de culpa, toda a política de memória foi estruturada em torno da noção da vitória do socialismo sobre o nazismo, da ideia de que os alemães orientais seriam irmãos socialistas que teriam lutado contra o nazismo. É uma narrativa que se constrói em torno desse passado que é diferente e que possivelmente se junta a todos esses outros elementos para nos ajudar a explicar por que dessa popularidade excepcional, quando comparado ao resto da Alemanha, da AfD nos novos estados federais.
[00:29:42] Filipe Mendonça: Essa é uma excelente hipótese de trabalho. Quero só enfatizar a importância de se resgatar a memória não como causa, mas como um elemento explicativo. Me lembro até que no episódio que gravamos aqui, semana passada, estávamos falando com Matheus Pereira sobre o Milei. Ele também apontou uma hipótese sobre a memória. Por que o Milei não resgata o passado da ditadura? Ele atribui isso à memória e à responsabilização na Argentina, diferente do Brasil, onde, infelizmente, nossa experiência com a extrema-direita conseguiu fazer um retorno ao discurso da ditadura por conta da política inadequada de memória e responsabilização feita no Brasil. Ou seja, nossa transição e anistia teriam deixado essa sequela, permitindo que líderes de extrema-direita pudessem resgatar o discurso da ditadura militar. Agora você está trazendo de novo essa variável, dizendo que a Alemanha Oriental teve um tratamento diferente da memória, tornando-a mais suscetível hoje a discursos de extrema-direita.
[00:31:02] Vinícius Bivar: Toda a noção de responsabilização, de culpa própria… a educação escolar na antiga Alemanha Ocidental foi muito diferente, estruturada em torno da lembrança, da monumentalização e do esclarecimento em relação aos crimes cometidos pelo nazismo. Existe uma resistência muito maior, e é curioso como observamos isso no mapa eleitoral das eleições europeias deste fim de semana. Há uma divisão muito clara entre a AfD nos estados da antiga Alemanha Oriental e, ainda que um voto conservador, um voto na direita democrática tradicional, representada pela CDU na maior parte do país e pela CSU na Baviera. Especificamente, são partidos diferentes, mas que operam quase como um partido, pelo menos em nível federal, quase como um partido unitário. Ainda que tenha havido uma guinada à direita de maneira ampla, ela se manifesta de forma diferente. Ela se manifesta de forma mais extremista na antiga Alemanha Oriental e de forma menos extremista, mais associada aos partidos da direita tradicional, como é o caso da CDU na Alemanha Ocidental. Eu diria que parte da explicação, como você bem disse, isso não é a causa, é um dos elementos que contribui para a explicação do porquê, por exemplo, ainda que tenha havido uma guinada à direita na Alemanha Oriental, isso não significou uma predominância eleitoral da AfD, como foi o caso em estados como Turíngia, Brandemburgo e Saxônia.
[00:32:52] Filipe Mendonça: É interessante. Quando você publicar, quando os achados começarem a aparecer, volte aqui e conte para a gente. É uma excelente hipótese, enfatizar a importância da política de memória e responsabilização, algo que não fizemos no Brasil, e quando tentamos fazer, deu no que deu, como nossa Comissão da Verdade. Enfim, essa é uma outra história para trabalharmos em outro momento. Mas eu queria voltar a um ponto. Você citou a ideia do cordão sanitário, ou seja, partidos de centro-direita e centro-esquerda, principalmente, criam um colchão de amortecimento para não permitir que essas teses extremas entrem no sistema político. No Brasil, quando o Bolsonaro assumiu, lembro que não usávamos o termo cordão sanitário, mas a imprensa dizia que as instituições estavam funcionando, que as instituições iriam enquadrar esse extremista mesmo eleito. O que aconteceu foi que temos exemplos recentes de que o cordão sanitário não foi suficiente para conter. O caso mais emblemático é o Trump nos Estados Unidos. Há diversas teses, como a do Levitsky, em “Como as Democracias Morrem”, que mostra que aquele cordão sanitário, com filtros institucionais, não evitou que sujeitos como o Trump entrassem no jogo, demonstrando a crise da democracia liberal. Na Europa, acho que a Hungria é o caso emblemático onde o cordão sanitário não foi suficiente para conter. Esse discurso do cordão sanitário sempre vai tolerando e pressionando até que uma hora a serpente sai do ovo. Como você vê isso?
[00:35:05] Vinícius Bivar: Esse é um dos sintomas do processo que Cas Mudde identifica como a normalização da extrema-direita. Observamos recentemente a aproximação entre Giorgia Meloni e Ursula von der Leyen. A nível europeu, é uma das evidências desse deslocamento da centro-direita do campo democrático, aproximando-se de movimentos mais radicais associados à ultradireita representada por Meloni. Em contextos nacionais, sobretudo na Europa Central, com exceção de Hungria e Polônia, bem como na Europa Ocidental, vimos um caso emblemático nos Países Baixos com a eleição de Geert Wilders. Foi uma surpresa para todos. Não se esperava que o Partido pela Liberdade dos Países Baixos saísse vitorioso, mas houve uma mobilização dos partidos tradicionais para evitar que ele assumisse o posto de primeiro-ministro. Foi feita uma coalizão, mas a condição para que essa coalizão fosse formada e envolvesse o partido de Wilders era que ele não fosse o candidato a primeiro-ministro, e sim outra pessoa, algum outro representante para ocupar esse papel. Mas é um sintoma da limitação dessa estratégia do cordão sanitário. A mesma coisa vale para a Alemanha. Na medida em que o eleitorado se desloca mais para a direita, há um incentivo para que partidos, sobretudo de centro-direita, se aproximem de posições mais radicalizadas, incorporando, por exemplo, o discurso anti-imigração e anti-refugiados. Sobretudo na Itália e na Alemanha, essa questão é bastante importante. Então, ao longo desse processo, ocorreu uma aproximação e um deslocamento desses partidos de direita mais para a direita, para um campo mais próximo dessa direita radical, colocando em xeque e mostrando a fragilidade dessa estratégia de cordão sanitário.
Na Alemanha, tivemos novamente um caso emblemático onde uma liderança da CDU, Friedrich Merz, cogitou em uma entrevista a possibilidade de formar governo com a AfD em nível regional. Isso obviamente foi um escândalo. O partido, outras figuras importantes prontamente vieram a público negar essa possibilidade, afirmando que a CDU, em nenhuma hipótese, se coligaria com a AfD, nem em nível regional, devido justamente às conexões, principalmente dessa ala mais extremista do partido com o neonazismo. Houve uma resposta institucional do partido contra essa declaração, mas isso sinaliza que esse firewall tem um prazo de validade.
De certa forma, a realidade eleitoral vem oferecendo incentivos para que partidos de direita se aproximem da AfD na tentativa de fragilizar esses partidos. Incorporar o discurso anti-imigração, algumas das pautas centrais de partidos como a AfD e o Front National, como uma forma de tentar esvaziar esses partidos. A estratégia claramente não foi bem-sucedida. Em um segundo momento, ocorre a tentativa de aproximação como forma de resgatar o prestígio desses partidos tradicionais perante um eleitorado que está se movendo cada vez mais para a direita. Tivemos como exceção os anos da pandemia, mas de maneira geral, desde 2013 até as últimas eleições, observamos um processo de ascensão gradual da extrema-direita relativamente constante. Como disse, o período da pandemia foi uma exceção, mas a regra tem sido justamente o ganho de relevância eleitoral por parte da extrema-direita, e os partidos de direita democrática têm tentado capitalizar esse deslocamento do eleitorado mais à direita, aproximando-se e colocando em xeque, eventualmente, essa estratégia do cordão sanitário ou do firewall.
[00:39:37] Filipe Mendonça: Vinícius, olha só, eu te trouxe aqui para te ouvir falar sobre as eleições do Parlamento Europeu. A gente nem falou ainda sobre isso, mas acho que discutimos todo o contexto que levou ao resultado, o que para mim é mais interessante do que o resultado em si. Falando agora sobre as eleições, um combo de provocações: primeira, quão representativo é o resultado para o Parlamento Europeu considerando disputas domésticas? Lendo como leigo, não percebo na imprensa quão representativa é essa eleição para a política doméstica. Sei que tem uma importância, não à toa o Macron convocou a eleição. Ele chamou a eleição para ver se o governo ainda tem legitimidade. Então, essa é a primeira pergunta. A segunda, esses partidos de extrema-direita que avançaram agora no Parlamento Europeu, eles são eurocéticos? Em uma de suas falas, quando historicizou a extrema-direita na Europa, você mencionou que algumas dessas ondas mostravam ceticismo em relação ao projeto europeu. Inclusive, na segunda onda, a identidade nacional já aparecia com muita força. Parece um curto-circuito. Se eles são eurocéticos, ganham espaço dentro de uma instituição que, em última instância, talvez nem gostariam de estar, considerando a estrutura do argumento de identidade nacional. A terceira é: considerando que esses partidos são muito diversos, é possível haver alguma coalizão entre esses partidos que ganharam algumas cadeiras? Essa composição, da maneira como ficou, é possível algum tipo de coalizão?
[00:41:56] Vinícius Bivar: Novamente, a resposta para todas essas perguntas é a diversidade. A União Europeia é um bloco extremamente heterogêneo e, nesses três cenários que você colocou, diferentes países vão adotar posições diferentes. Então, para alguns países, por exemplo, as eleições europeias são vistas como algo completamente separado, que não tem nenhuma correlação com a eleição nacional. Já em outros países, há uma postura intermediária, onde você tem algum nível de correlação, mas a eleição europeia é entendida como algo diferente, que ainda que exista certa representatividade desse resultado que possa ser eventualmente transposta para eleições nacionais, tende a não seguir as mesmas proporções analisadas nesses dois diferentes contextos, europeu e nacional. E você tem partidos, e talvez esse seja o principal aspecto, nos principais países do bloco, os mais populosos, consequentemente com maior representação no Parlamento Europeu, onde há uma correlação mais forte, mais presente, e essas eleições acabam funcionando.
Eu fiz essa comparação com as midterms americanas quando falava sobre a AfD numa palestra que dei na PUC há umas semanas atrás. Elas funcionam como uma espécie de referendo de ocasião e acabam mobilizando um certo voto de protesto, um certo discurso anti-sistema, uma sinalização acerca da insatisfação da população com o governo. E esse, por exemplo, é claramente o caso da Alemanha. O resultado das eleições europeias e a ascensão não só da CDU, a recuperação do prestígio da CDU, e a ascensão da AfD, são tanto produto de uma guinada mais conservadora do eleitorado, quanto um referendo acerca da posição desse eleitorado em relação aos três principais partidos da coalizão governista: os social-democratas, os verdes e os liberais, que todos eles perderam votos. E, aliás, talvez a gente pode tirar algum tipo de padrão dessa complexidade que é a eleição para o Parlamento Europeu, que é de que, com exceção da Itália, onde Giorgia Meloni consegue manter certa popularidade, o Fratelli d’Italia teve um resultado bastante expressivo. Essa foi uma eleição essencialmente antigovernista, onde os partidos governistas acabaram tendo resultados aquém do esperado, inclusive em países como Polônia e Bélgica, que têm governos mais conservadores, e países nórdicos, onde há governos mais conservadores e se observou um ganho eleitoral da esquerda.
Então, se existe algum tipo de padrão que podemos identificar nesse processo eleitoral, é esse sentimento antigovernista que acabou mobilizando uma parcela do eleitorado e favorecendo o crescimento de partidos e movimentos não associados ao governo. Em relação à representatividade, no caso francês, existe uma correlação maior entre a eleição europeia e a eleição nacional. O resultado francês carrega um simbolismo e uma relevância maior. Macron tem três anos para se provar. No caso da Alemanha, a AfD vem crescendo gradualmente desde o fim da pandemia, se colocando como segunda força. Houve uma desmoralização da coalizão governista. Veremos se esse resultado se traduz em uma eleição nacional.
Na Itália, Giorgia Meloni subiu ao poder como candidata antissistema, relativamente eurocética. A AfD começa como um partido contrário à zona do euro, não necessariamente à União Europeia como um projeto de integração. Esse discurso arrefeceu após o Brexit, com o fiasco que foi, e hoje é difícil encontrar um partido que advogue a saída da União Europeia. Participam das instituições europeias buscando erodir por dentro essas instituições.
[00:55:27] Filipe Mendonça: E isso faz parte significativa da estratégia da extrema-direita como um todo, corroer por dentro.
[00:55:11] Vinícius Bivar: Exatamente. É uma das características que distingue esses movimentos de direita, sobretudo a partir da segunda onda, dos movimentos do nazismo e fascismo históricos. Eles não defendem uma ruptura, mas uma erosão paulatina das instituições. Vitor Orbán na Hungria é o caso mais emblemático. A ideia é de que você vai paulatinamente erodindo as instituições democráticas, controlando a imprensa, aumentando o número de juízes na Suprema Corte, redistribuindo distritos para favorecer seu partido. E com a União Europeia, a ideia é desagregar o processo europeu, criando uma federação de nações, onde a cooperação geográfica e a guerra cultural fundamentam o discurso anti-imigração, mesmo participando das instituições que supostamente não apoiam. Então, isso seria o resumo dessa diversidade e complexidade.
[00:55:30] Filipe Mendonça: Coloquei você numa furada, mas a resposta foi bastante completa.
Citação:
CHUTANDO A ESCADA: A Ascensão da ultradireita na Europa. Entrevistado: Vinícius Bivar. Entrevistador: Filipe Mendonça. Brasil: Chutando a Escada, 2024. Podcast. Disponível em: https://www.chutandoaescada.com.br. Acesso em: [Data do acesso]