No episódio de hoje do Chutando a Escada, Filipe Mendonça conversa com Maria Caramez Carlotto, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e presidenta da Associação dos Docentes da UFABC. Eles discutem a greve nas universidades federais brasileiras, que começou em 15 de abril e envolve tanto professores quanto técnicos administrativos. Aperte o Play!

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Participaram deste podcast:

Capa do episódio:

Transcrição do episódio 345, “Greves nas federais”

[00:00:00] Filipe Mendonça: Seja bem-vindo e seja bem-vinda a mais uma edição do Estão da Escada. Aqui é Filipe Mendonça e hoje eu converso com a Maria Carlotto.

[00:00:08] Maria Carlotto: Oi, Filipe. Eu sou Maria Carames Carlotto. Eu sou professora da Universidade Federal do ABC, entrei em 2015 e em 2016 assumi a presidência da Associação dos Docentes da UFABC, numa conjuntura muito tranquila, né? 2016, 2020, peguei até a pandemia, saí, já tinha achado que tinha dado a minha contribuição, voltei para a direção do sindicato para contribuir de maneira muito lateral, aí fui para a vice-presidência, porque era um cargo tranquilo, e acabei tendo que assumir a presidência numa outra conjuntura muito tranquila, que é a greve docente. Então, estou agora presidente da Associação dos Docentes da UFABC.

[00:00:52] Filipe Mendonça: Bom, e hoje a gente fala então sobre a greve nas universidades federais brasileiras, que teve início em 15 de abril e tem mobilizado tanto professores quanto técnicos administrativos. As duas categorias estão em greve. Inclusive, os técnicos administrativos entraram em greve um pouco antes. As duas categorias, grosso modo, pedem reajuste salarial. Então, o principal sindicato dos professores tem uma proposta de reajuste. Na verdade, o correto seria chamar de recomposição, porque as propostas não pedem ganhos reais considerando a defasagem dos últimos anos e os técnicos administrativos a mesma coisa eles pedem ali uma recomposição do salário equivalente à inflação acumulada no período.

Também existem outras reivindicações, como a melhoria nas condições de trabalho e o fim do corte de verbas nas universidades. É importante destacar a grande preocupação com os cortes orçamentários que as universidades vinham sofrendo, especialmente desde o governo Temer, impactando diretamente o ensino, a pesquisa e a extensão. E pedem, obviamente, portanto, o reajuste do orçamento das universidades para que elas consigam devolver à sociedade o principal produto das universidades, que é a formação de qualidade. Especificamente, a greve docente tem algumas particularidades. você tem ali o Andes Sindicato Nacional, que é o Sindicato Nacional das Instituições Federais de Ensino Superior. Você tem também o SINASEFE, que é o Sindicato Nacional dos Servidores Federais em Educação, que tem uma carreira muito parecida, mas que tem algumas especificidades. E aí você tem o engodo, que é um sindicato chamado PROIFES, que é a Federação de Sindicatos de Professores e Professoras, que percentualmente representa uma parcela bem pequena da categoria. E aí foi justamente o PROIFES que assinou, no dia 27 de maio, na segunda-feira dessa semana, um acordo com o governo federal, prevendo um reajuste bem abaixo do que as categorias têm pedido, começando a partir de 2025.

Então, até ontem, até o dia 28 de maio, 50 universidades, institutos e centros de educação federais ainda permanecem em greve mesmo após a assinatura do acordo. Negociações entre a categoria e o governo federal continuam, mas ainda sem um horizonte definido que pode colocar fim à greve.

Bom, mas antes da gente ouvir a Maria, eu quero te pedir, se você puder, para apoiar o Chutando a Escada. Para isso é muito simples. Basta entrar em www.chutandoaescada.com.br/apoio e lá você vai encontrar várias formas de ajudar.

Bom, greve sempre é um transtorno, suspensão das aulas gera um impacto grande, é verdade, mas a greve é necessária porque é grave, e a Maria vem aqui contar para a gente tudo o que está acontecendo. Então, sem mais delongas, vamos para o papo.

[00:04:02] Intervenção musical

[00:04:22] Filipe Mendonça: Para quem nos ouve e não sabe, as universidades federais brasileiras estão no meio de uma greve, uma greve muito difícil, e a gente conversa com a Maria para ela contar um pouquinho para a gente o que tem acontecido, explicar um pouquinho quais são as demandas, as pautas e para que rumo pode ir o movimento grevista agora, nessa semana, considerando a assinatura do acordo que foi feita no dia de ontem, no dia 27 de maio de 2024.

Antes de entrarmos na agenda, Maria, me conta… que greve é essa? Qual a importância dela? O que o movimento paredista busca com essa greve? Se você puder explicar um pouco para nós, dando um panorama geral, para que o ouvinte entenda o que está acontecendo, eu acho importante.

[00:05:09] Maria Carlotto: Filipe, eu acho que eu posso começar dizendo que essa é uma greve histórica. Para a gente ter a dimensão do tamanho dessa greve, o Brasil tem 63 universidades federais. O levantamento feito pelo Comando Nacional de Greve ontem, dava conta de que das 63, 59 estão em greve, e duas têm greve aprovada para os próximos dias. Esse eu acho que é o primeiro dado para a gente começar a avaliar o tamanho desse movimento.

Essa greve começou no dia 15 de abril e veio não crescendo, praticamente ininterrupto e continua crescendo. Como eu falei, tem duas universidades que ainda vão entrar em greve nos próximos dias.

Qual é a pauta desse movimento histórico? A greve tem cinco eixos. O primeiro é a reposição salarial. Veja, nós a partir de um levantamento do DIEESE, nós concluímos que as perdas salariais entre 2016 e o final do governo Lula, considerando a inflação projetada, seria da ordem de 50%. Considerando que o que foi dado para nós no acordo firmado no ano passado, o reajuste emergencial de 9%, descontando isso, a gente chegou no índice de 22,71 %, que considerava-se ainda um resquício do acordo de 2015 que impactou até 2019.

A situação, a partir daquele momento, foi que a despeito de um orçamento que, se tivesse sido implementado na sua integralidade, teria sido o pior da história, muito pior do que esse, o fato é que as universidades conseguiram sobreviver àquele período, até porque a coisa era tão brutal que as emendas parlamentares compensavam um pouco aquela situação.

Hoje, nós não temos essas emendas parlamentares para as universidades e as universidades estão funcionando a pleno vapor, inclusive com demanda represada da época da pandemia. Essa situação faz com que a gente esteja hoje precisando, esse é um cálculo da Andifes, da Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Universitárias Superiores, de uma reposição mínima de 2,5 bilhões.

Então, um segundo eixo da nossa greve é a reposição orçamentária das universidades para a gente seguir funcionando, cumprindo o nosso papel básico. Depois tem outros três eixos. A reestruturação da carreira: a nossa carreira foi muito destruída por um outro acordo afirmado pelo PROIFES em 2012; a questão dos aposentados que foram muito atingidos por esse acordo de 2012 e que, se não tiver reposição salarial em 2024, ficam realmente numa situação muito complicada;  e o revogaço, ou seja, a revogação de uma série de medidas.

[00:07:59] Esses são cinco eixos da nossa greve. Não é só salário, é uma greve em defesa da educação, é uma greve histórica, porque a gente vem de período de muito ataques desde o governo Temer. Desde 2015 você tem um corte de orçamento importante. A partir do governo Temer, além do corte dos ataques orçamentários, você tem os ataques simbólicos. Então a gente vem de um período muito difícil e com muitas expectativas para esse governo, expectativas que vêm sendo frustradas. E isso tem mobilizado um movimento muito enraizado, muito enraizado no corpo da comunidade universitária, de resistência e de disputa do fundo público, porque é isso que a gente entende que é essa greve.

[00:08:46] Filipe Mendonça: Maria, greve é um instrumento de luta legítimo, até o próprio Lula tem dito isso, reconhece a legitimidade da greve, mas o que eu tenho escutado, principalmente da parte de quem é contra a greve, é que a greve não é mais o instrumento adequado porque o transtorno é muito grande, e os docentes deveriam tentar construir outras formas de luta. Eu acho importante o ouvinte entender que, na minha visão, imagino que seja a sua também, não haveria universidade pública no Brasil se não fosse os movimentos de luta, incluindo as greves históricas que aconteceram na história do Brasil. Você entende da mesma forma?

[00:09:51] Maria Carlotto: Entendo da mesma forma. Inclusive, o argumento de que sem a greve nós conseguiríamos, por outros meios, pressões parlamentares, fazer e acontecer, é absolutamente falso. Basta olhar o que foram os governos Temer e Bolsonaro. Nós perdemos sistematicamente, sistematicamente, porque a gente não foi capaz de organizar um movimento forte como esse, até porque o cenário era muito difícil, a gente estava com a democracia em risco, então era natural. Greve é um instrumento da democracia, então é natural que seja nesse governo, nesse contexto democrático. Nesse ponto eu até concordo bastante com o Lula, a declaração que ele deu em Guarulhos, “Que bom que vocês estão fazendo greve”, porque a democracia é isso mesmo. Nós batalhamos para derrotar o fascismo no Brasil, para poder fazer greve, para poder reivindicar.

[00:10:42] Trecho do UOL, “Lula é recebido por grevistas na UNIFESP: “Eu estou vendo alguns companheiros levantando um cartaz dali para mim, estamos de greve. Que bom que vocês podem vir no comitê do Lula e levantar um cartaz dizendo que estão com greve. Que bom. Que maravilha que é garantir o direito democrático das pessoas lutarem, das pessoas reivindicarem e das pessoas chegarem a um acordo. Há pouco tempo atrás os estudantes não podiam se manifestar, os professores não podiam reivindicar, os reitores não podiam reclamar e o governo não estava disposto a negociar”.

[00:11:27] Maria Carlotto: No governo Temer e Bolsonaro, nós fizemos muita coisa, mas nós não conseguimos fazer greve. Acho que as pessoas nos cobram muito isso. Eu acho que é importante esclarecer que nós tivemos uma greve muito importante em 2015, que resultou num acordo salarial que correu até 2019. Quando esse acordo parou, quando se interrompeu a recomposição e começou a correr nossa defasagem salarial mais pesada, veio a pandemia. Eu me lembro que eu era presidente do sindicato, nós estávamos organizando uma gigantesca manifestação, que seria análogo ao tsunami da educação de 2019, que foi a maior manifestação. Isso é importante dizer, a maior manifestação contra o governo Bolsonaro foi feita pelo setor da educação, com muita participação das universidades federais. Eu mesma ajudei a organizar na presidência da UFABC na época.

Então, nós estávamos fazendo outra atividade análoga a essa, dia 18 de março. Eu nunca vou me esquecer essa data, porque no dia 13, era uma sexta-feira, a minha universidade fechou para a pandemia, só reabriu um ano e meio depois. Acho que todo mundo viveu essa situação. Então, nós não conseguimos fazer greve porque veio o contexto da pandemia, e depois, em 2022, quando a gente começou a reestruturar as universidades, a nossa tarefa histórica era derrotar o fascismo, era salvar a democracia brasileira.

E eu digo sem medo de errar. A democracia brasileira foi salva por uma forte mobilização da imprensa, do judiciário, dos partidos de esquerda organizados e das universidades públicas, que cumpriram um papel muito importante nessa resistência. Então, a gente entendeu que não era momento de fazer greve, que era momento de salvar a democracia. Então, nós estamos gozando, na minha opinião, de um direito que nós conquistamos, o direito de greve num contexto democrático.

E aí, você remete à história das greves. Eu acho muito importante lembrar que, a partir dos anos 90, o projeto declarado do Banco Mundial para o sistema educacional era a privatização do ensino superior e o Estado se comprometer apenas com o ensino básico, fundamental e básico, até o ensino médio. A partir do ensino superior, isso deveria ser privatizado, que é o modelo chileno, por exemplo, de ensino superior.

Todo o movimento dos anos 90, do governo Fernando Henrique, do Paulo Renato, ministro da Educação, era caminhar nesse sentido, da privatização das universidades. Isso só não caminhou porque as greves conduzidas na época pelo Andes Sindicato Nacional, em associação com a UNE, com a FASUBRA, que representa os técnicos, elas foram muito fortes e elas conseguiram pôr um freio no projeto de privatização de tal maneira que, quando começa o governo Lula a partir de 2003, nós temos condições de retomar um projeto de universidade pública mais democratizado. Daí todo o conjunto de políticas que culminam com a lei de cotas de 2012, mas que reúnem outras medidas, a interiorização das universidades, o Enem unificado, enfim, que democratizaram o acesso e expandiram a universidade pública.

Isso só foi possível porque teve greve. Porque as greves impediram, fizeram um freio no projeto de privatização. Ao longo dos governos Lula e Dilma, nós também tivemos muitas batalhas, inclusive greves importantes, mas a partir daquele contexto, já entra em cena esse ator muito complicado, que é o PROIFES Federação.

Então, a situação, só para as pessoas entenderem, é que foi este PROIFES federação, que representa uma parcela muito diminuta da categoria, e ainda dentro dessa parcela, a maioria dos seus filiados rejeitaram a proposta, assinou com o governo um acordo com a proposta que o governo fez. E que, detalhe, ele marcou o dia 27 para a gente assinar e até o dia 27 nós não tínhamos conhecimento do inteiro teor do que seria assinado. Mas o que consta na minuta do acordo? A gente não sabia.

Então ontem era um dia muito importante porque o Comando Nacional de Greve, que reúne todas as associações docentes do ANDES, mais os comandos locais de greve que estão na base do PROIFES e que estão em greve (como Goiás, Rio Grande do Norte, Bahia), estão todos lá no Comando de Greve. Nós construímos, no final de semana 25 e 26, uma contraproposta, a partir do que o governo nos apresentou.

Então, assim, nós tínhamos uma pauta inicial, já tínhamos construído uma primeira contraproposta. O governo fez a proposta do 15 de maio, em cima da proposta, nós fizemos uma outra proposta, uma contraproposta, ou seja, numa dinâmica de negociação normal de uma greve fortíssima, de um comando de greve enorme, e nesse comando de greve se consolidou uma contraproposta que foi protocolada ontem. Então, veja que contradição: no dia em que o maior sindicato, que representa a maioria absoluta dos docentes das universidades federais, o Comando Nacional de Greve, com as 59 universidades em greve, constrói uma contraproposta, protocola uma contraproposta, e o governo sequer olha a contraproposta e assina com o PROIFES, que não representa ninguém, nem a sua própria base.

Tanto isso é verdade, que na reunião com o governo, para assinatura do acordo, e que, na verdade, nós fomos apresentar a nossa contraproposta, um companheiro, um colega da UFBA, leu uma carta, escrita pelos sindicatos ligados ao PROIFES que estão em greve, pedindo que o governo não assinasse com esse sindicato, porque ele não representa a categoria.

[00:17:22] É uma fala muito forte, porque o que nós estamos reivindicando, em síntese, é um processo de democracia sindical, que é negociar com aqueles que realmente representam os docentes, e não com uma instituição que, no momento, está extremamente fragilizada do ponto de vista da sua legitimidade, para não dizer da sua legalidade, porque a justiça já deu ganho de causa para o SINASEFE, que representa os institutos federais, dizendo que o PROIFES não os representa, não pode assinar por eles.

E tem uma série de petições judiciais feitas por sindicatos da base do ANDES, reivindicando que o PROIFES também não tem legitimidade para assinar por nós, porque eles realmente não nos representam. Então, o cenário é esse: essa é uma greve histórica, mas que faz parte da tradição de greves das universidades públicas federais, greves que resultaram em muitas conquistas, para não ir muito além, a conquista delas seguirem subsistindo a era neoliberal dos anos 90 de tal maneira que elas pudessem cumprir, no governo Lula e Dilma, a partir de 2003, um papel tão importante como que elas cumpriram naqueles governos.

[00:18:52] Filipe Mendonça: Então, deixa eu recapitular. Você está dizendo que a greve, ou greves no geral, desde a década de 80 até a última, que foi em 2016, contra o teto de gastos, depois todos os enfrentamentos que foram feitos durante o governo Bolsonaro… porque sempre escuto essa crítica: “Ah, vocês estão fazendo greve agora, mas não fizeram no governo Bolsonaro”. Bom, não é bem assim, a tua fala já deixou bem claro. Fizemos muita coisa e também tem uma pandemia global aí no meio do caminho, que na minha leitura, e se entendi bem, também é a sua, acabou impedindo uma greve que seria histórica. A gente não tem bola de cristal, é bem verdade, mas havia um movimento que vinha num contínuo de crescimento, e…

[00:20:00] Maria Carlotto: Nós íamos fazer uma greve muito grande. Eu me lembro desse dia de março, seria uma coisa hecatômbica e não pode acontecer.

[00:20:10] Filipe Mendonça: E aí, de lá para cá, o governo Lula é eleito, há uma PEC emergencial de transição, e foi feita uma recomposição, não só para professores, mas para todo o funcionalismo, de 9%, considerando a defasagem. No entanto, isso não cobria a defasagem nem do governo Bolsonaro, muito menos do governo Temer. Houve uma promessa de iniciar uma negociação logo que o governo assumisse, de fato. Em 2023, discutimos o ano todo numa mesa permanente. Até que agora, há uma proposta que o governo insiste ser final. É importante destacar que, na sua fala, você menciona que o governo optou por assinar com um sindicato que não tem legitimidade. Para o ouvinte que não é docente e não entende muito bem como funciona o movimento sindical dos professores federais, é importante saber que existem dois sindicatos. Um deles é um sindicato que chamamos, de forma carinhosa, de sindicato pelego, criado, se não me engano, em 2003, não é?

[00:21:38] Maria Carlotto: Acho que é 2004.

[00:21:40] Filipe Mendonça: Em 2004, com uma base, uma federação, e de lá para cá eles vêm, de maneira um pouco sistemática, assinando os acordos que o governo coloca na mesa. Se não me engano, assinou o acordo de 2012 e o acordo de 2015 sem discutir com o sindicato, o maior sindicato, aquele que representa de fato a categoria, que é o Andes. Então, a gente tem essa situação paradoxal: o Andes puxa a greve, faz uma greve forte, o governo faz uma proposta capenga, e vai lá o PROIFES e assina. É um pouco essa dinâmica. E aí, transformando isso em uma pergunta, o que você acha que o movimento docente deve fazer? Porque já não é a primeira nem a segunda vez. É a terceira vez que o PROIFES faz isso. E agora com um agravante. Você disse que a própria base do PROIFES, inclusive, leu uma carta para o ministro. Ou seja, o PROIFES não tem legitimidade nem na sua própria base, que é muito pequena comparado ao montante total de universidades e de docentes. É por aí?

[00:22:55] Maria Carlotto: Sim, a sua síntese é absolutamente perfeita, é exatamente isso. Eu acho que já era grave em 2012, 2015, porque isso não representa a maior parte do movimento, muito menos a maior parte do movimento que estava mobilizado, que consegue as conquistas, digamos assim, por meio do seu movimento. Mas hoje é muito mais grave, tem uma novidade histórica nesse processo, porque naquela época pelo menos havia base no próprio PROIFES para a assinatura desses acordos. Hoje, nem isso. Nós não sabemos como foi a consulta no Rio Grande do Sul, até porque o Estado está absolutamente tomado por uma calamidade. Em que condições se deu essa consulta, a gente não sabe, então não temos os dados. E a UFSC, que fez uma consulta online só para sindicalizados, votou extremamente dividida.Então, assim, todas as demais rejeitaram o acordo e seguem em greve. É uma situação realmente gravíssima, porque nem sequer a sua própria base eles representam. É realmente um acordo que não tem a menor legitimidade.

Em que momento estamos? Acho que é importante dizer isso para as pessoas. O ANDES, ontem, que era o dia marcado para assinar o acordo, protocolou uma contraproposta e subiu para apresentar essa contraproposta. Ao invés de assinar o acordo, nós vamos apresentamos nossa contraproposta. E na negociação, conseguiu que o governo, o Ministério da Gestão e da Inovação, marcasse uma nova data no dia 3 de junho, segunda-feira que vem, para discutir essa contraproposta. Então, em síntese, é isso, é nesse momento que estamos: o governo assinou com o PROIFES, e o Andes protocolou uma contraproposta e conseguiu uma nova data.

E aí, te respondendo o que o movimento deve fazer, eu acho que essa é uma semana crucial para pressionarmos especialmente parlamentares, escrever na imprensa, fazer podcasts como esse, falar da nossa greve, divulgar nossas pautas, para gerar um movimento de pressão para que o governo reabra negociações conosco, com a base majoritária das universidades, amplamente majoritária das universidades que estão em greve. É possível construir um aditivo para esse acordo, ou mesmo sustar esse acordo e firmar outro. Eu acho que, assim, parte da nossa greve, e acho que esse é um ponto bem importante, é que toda greve é política, mas essa é uma greve mais política, porque o movimento está decidido a se fazer ouvir enquanto movimento organizado, sem intermediários, que cumpram esse papel de entreposto entre o movimento e o governo.

Então, assim, para nós é uma questão de honra que o governo nos ouça, negocie conosco, com quem realmente representa o movimento, porque senão a situação do movimento sindical fica muito complicada. Isso é uma situação absolutamente antidemocrática: você constitui um movimento, constitui uma representação e o governo não reconhece essa representação como legítima; então, é o governo que decide quem é o sindicato legítimo? Isso é absolutamente antissindical. Então, parte da disputa do momento é essa: que se reconheça e se negocie com quem de fato tem legitimidade para representar a categoria. E a categoria disse não para esse acordo.

Acho que é importante dizer que a contraproposta construída é muito factível: pedimos apenas a reposição da inflação de 2024, apenas isso, e para 2025, o que o governo propôs, 9%, e para 2026, mais ou menos 5%.

Somados em juros compostos, isso dá 18 e alguma coisa, menos do que os 22,71 que seriam necessários para recompor nossas perdas. Então, se essa contraproposta for atendida na íntegra, terminaremos o governo Lula ainda acumulando perdas salariais. Percebe? Não é que estamos pedindo o céu, estamos pedindo o básico do básico: a recomposição orçamentária das universidades, uma mesa permanente para discutir carreira, que é algo importante, e a revogação de um conjunto de medidas que destacamos, porque temos uma lista enorme de medidas que queremos que sejam revogadas. É algo absolutamente factível. Então é inadmissível, incompreensível até do ponto de vista de uma lógica política, que não se negocie a partir desta contraproposta.

[00:28:00] Filipe Mendonça: Maria, eu queria aproveitar sua presença, porque você estava em Brasília na segunda-feira, dia 27 de maio, onde aconteceu uma mesa de negociação. Na verdade, não foi uma mesa de negociação, mas um anúncio do governo de maneira unilateral. O secretário de Relações de Trabalho, José Feijó, assumiu em tom irônico que daria um tiro no próprio pé ao ser alertado pelo movimento que aquilo seria um tiro no pé. Ou seja, ao propor e assinar com o PROIFES, um sindicato sem legitimidade, ele respondeu ironicamente que daria esse tiro no pé e assumiria o custo disso. Enfim, estou levantando essa questão porque gostaria de ouvir seu relato sobre o que aconteceu ali, para registrarmos como funcionou essa mesa.

[00:29:05] Maria Carlotto: Perfeito, então, primeiro, eu não subi. Eu estava no Comando Nacional de Greve como delegada da UFABC. Mas o comando é muito grande. Como eu falei, são 59 universidades em greve, então são 59 delegados. Cada uma pode levar três observadores, então vocês calculam quantas pessoas, é um comando bem grande.

Claro, nem todo mundo está presente o tempo todo, mas ainda assim estamos falando de bastante gente, muitas lideranças sindicais do Brasil todo reunidas. Então, nós construímos a contraproposta no final de semana e protocolamos na segunda-feira de manhã. Pedimos para enviar 20 pessoas. O governo devolveu dizendo que seriam cinco, cinco para o ANDES e cinco para o SINASEFE.

A princípio, seriam cinco para o PROIFES também, porque até então a mesa de negociação transcorria com as três entidades. Para esclarecer, o ANDES representa os docentes das universidades federais, o PROIFES representa seis ADs que eu comentei, e o SINASEFE representa os institutos federais e a carreira EBTT dos institutos federais.

Então, essa era a mesa de negociação. Subiram cinco companheiros; eu não era uma dessas, nem me candidatei. Os cinco companheiros nos informavam do que estava acontecendo. A reunião estava marcada para as duas da tarde. É importante dizer, acho que nem todo mundo sabe, mas é uma informação relevante, que na segunda-feira de manhã houve uma reunião da Executiva Nacional do Partido dos Trabalhadores.

Essa reunião foi resultado de uma pressão muito forte que o movimento docente fez sobre os parlamentares do partido, com quem nós temos contato, para que o partido pressionasse pela dilatação da negociação, ou seja, pressionasse o governo para reabrir negociações. O resultado foi essa reunião da Executiva Nacional, onde o Feijó participou virtualmente para dar um informe sobre o andamento das negociações.

Nessa reunião, ele conta uma versão muito parcial dos fatos, da maneira como ele vê. Ele é até questionado por parlamentares e dirigentes partidários presentes, que afirmam que isso não batia com o que o movimento dizia. Basicamente, ele dizia que a maioria dos docentes aprovava a proposta e que a recusa era fruto de uma radicalização do movimento. Isso não é verdade, a maioria rejeita, e isso nada tem a ver com radicalização. É um movimento legítimo, de base, muito enraizado, de disputa do fundo público, de recusa a assumir perdas salariais, uma atitude absolutamente sindical, que inclusive está na tradição do Partido dos Trabalhadores, até onde quem conhece a história sabe.

Então, nessa reunião de manhã, ele diz que receberia o ANDES e o SINASEFE às duas da tarde e o PROIFES às três e meia. Ele é pressionado para não assinar e dilatar um pouco esse prazo, mas ele é contra, dizendo que nada vai mudar. Relatos dessa reunião já estão circulando.

Por que é importante dizer isso? Porque alguma coisa aconteceu que fez a reunião das duas ser transferida para três e meia. Não sabemos o que aconteceu, mas a reunião foi transferida. Nossos representantes subiram junto com o SINASEFE e, de fato, não encontraram o PROIFES, mas sim um outro secretário chamado Zé Celso, do MGI.

Zé Celso abriu a reunião dizendo que estava ali para ouvir e receber a contraproposta. Tudo indicava que era uma reunião de negociação, que eles estavam reabrindo as negociações. Para nós, isso foi motivo de comemoração: “Que bom, vão receber nossa contraproposta, vão abrir a negociação.” Perguntaram se o Feijó estava em outro lugar com o PROIFES assinando, e ele disse que não. A reunião transcorria muito bem até quatro da tarde. De 3h30 às 4h, esse era o tom; apresentamos a contraproposta, nossos representantes a apresentaram.

Às 4h, chega o Feijó, que até então estava conduzindo as negociações, e diz para os presentes, (desculpa estar dando tantos detalhes, mas acho importante), que ele ia sim assinar com o PROIFES. Primeiro disse que não seria naquele dia, depois disse que seria, enfim, houve uma confusão de informações. Um colega da UFBA lê a carta que mencionei, entregando uma manifestação das universidades da base do PROIFES em greve. Ele diz, “você é um companheiro de sindicalismo, sabe o que isso significa, sabe que é um princípio sindical básico que quem represente negocie”. Feijó fica muito irritado ao ouvir que, caso o governo assine com o PROIFES, dará um tiro no pé. Feijó se irrita ainda mais, bate na mesa, diz que assinará com o PROIFES naquele dia, e sai da sala, chamando seguranças para acompanhar os companheiros que estavam lá que dizem que só desceriam após a confirmação da agenda do dia 3 de junho, permanecendo lá até a chegada do e-mail. A assinatura do acordo com o PROIFES, que nem sabíamos se realmente aconteceria naquele dia, foi confirmada pelas fotos divulgadas, mostrando que o acordo foi assinado numa sala fechada.

Depois dessa reunião, a assinatura do acordo com o PROIFES e a agenda do dia 3 foram confirmadas. Estamos preparando todas as nossas forças para manifestações em todo o país, pedindo que o governo nos receba.

[00:35:16] Filipe Mendonça: Então é isso. Maria, o que a gente pode fazer, o que o ouvinte pode fazer para que o governo receba o movimento no dia 3 e considere seriamente a pauta do Andes, a pauta do movimento docente, que foi construída democraticamente, como você falou? Não é uma pauta que surgiu na cabeça de uma diretoria; é uma pauta que é construída a partir de um processo enorme que envolve assembleias em cada universidade e que depois é consolidada coletivamente em Brasília, no Andes.

[00:36:08] Maria Carlotto: Então, Filipe, eu acho que esta é uma semana crucial. É uma semana complicada por ter um feriado no meio, mas o que percebemos que tem gerado mais impacto, e o Comando Nacional de Greve do Andes está trabalhando nisso hoje e amanhã, é a pressão sobre parlamentares. Isso tem gerado resultados para nós. Veja, uma coisa importante a dizer é: o que estamos pedindo para 2024? É a reposição da inflação. As pessoas talvez não saibam, mas os professores universitários federais devolvem ao governo 40% do que recebem em imposto de renda, mais 14% de contribuição previdenciária, que varia, mas gira em torno disso. Então, recebemos e devolvemos 40%. Considerando isso, o impacto orçamentário é muito pequeno.

Quando as pessoas, os deputados, sabem do que estamos falando, eles ficam incrédulos. Até porque a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Penal Federal, só para citar três carreiras, tiveram reajustes acima da inflação, com ganhos reais. E têm salários maiores do que os nossos. Carreiras com salário inicial muito maior do que o dos professores universitários que fazem mestrado, doutorado, conduzem toda a pesquisa do país e formam todas as profissões.

[00:37:25] Filipe Mendonça: E não bloqueia estrada em dia de eleição…

[00:37:29] Maria Carlotto: Pelo contrário, Filipe, combate o negacionismo, defende a democracia. Então, o que nós estamos pedindo é o mínimo do mínimo. É um impacto muito pequeno. Então, o que nós temos feito esta semana é pegar os parlamentares do seu estado, especialmente aqueles do campo democrático e progressista, e pressionar. Além disso, claro, escrever nas redes, fazer campanha, distribuir os materiais das suas associações docentes e do sindicato nacional, do comando nacional de greve. Sigam-nos nas redes sociais, sigam suas associações docentes nas redes sociais. Vamos fazer uma pressão muito grande. Quero terminar dizendo o seguinte: nós vamos ter muitas batalhas pela frente. Isso aqui está só começando. A gente sabe que é um governo de frente ampla, e que a extrema-direita não foi derrotada politicamente na eleição. Ela sofreu uma derrota eleitoral importante e uma derrota política, mas segue viva, segue disputando.

O centrão está aí, com todas as suas pautas. Então, sim, vêm coisas muito importantes pela frente. Vem a reforma administrativa, que pode acabar com o serviço público no Brasil, tal como a gente conhece desde a era Vargas. Vem a proposta de desvinculação constitucional da saúde e da educação, alterando os mínimos constitucionais para esses setores. Enfim, é um avanço sobre o fundo público para a saúde e a educação, e vai ser uma batalha duríssima. Para tudo isso, precisamos acumular forças, e entendemos que este é o momento. Vencer essa greve politicamente é fundamental. Ela já é uma greve vitoriosa: o governo fez uma pequena reposição orçamentária para as universidades e melhorou a proposta. Nós reconhecemos isso, mas precisamos avançar para que o governo reconheça que a categoria tem uma representação sindical legítima.

Portanto, as pautas deste movimento e a contraproposta feita precisam ser consideradas. Isso é absolutamente fundamental para que possamos acumular forças para as batalhas que vêm por aí. Vencer essa greve é uma condição muito importante para o movimento docente e para o futuro da educação pública brasileira. Temos consciência disso e é esse o jogo que estamos jogando.

[00:39:54] Filipe Mendonça: É isso aí, Maria. Alguma pergunta que eu deveria ter feito e não fiz por absoluta incompetência?

[00:40:01] Maria Carlotto: Eu acho que as suas sínteses foram ótimas. Mais do que uma entrevista, foi uma conversa. Você entende até mais do que eu de algumas coisas.

[00:40:10] Filipe Mendonça: Então fica aqui meu recado final. Se você puder pressionar o seu representante, você que me ouve, é muito importante. Veja, se há uma universidade pública de qualidade e gratuita, é porque há mais de 40 anos de luta permanente, cujo objetivo principal é fortalecer a universidade, devolver o dinheiro investido para a sociedade, formando pessoas com qualidade. A recomposição do orçamento é muito importante. Temos universidades cujos prédios estão desabando. Veja, a Federal de Uberlândia, de onde eu falo, tem orçamento para funcionar só até julho. Depois disso, não há dinheiro, não há como repor. Para o ouvinte entender, não tem como comprar papel higiênico, pagar a conta de água, ou outras despesas essenciais.

[00:41:13] Maria Carlotto: Me dá uma parte, Filipe?

[00:41:15] Filipe Mendonça: Por favor.

[00:41:16] Maria Carlotto: Para terminar, acho que tem um ponto importante. Muita gente diz que a greve prejudica os alunos, vocês não pensam nos alunos. É o contrário, né, Filipe? Na verdade, a gente não pode entregar para os alunos um engodo. Qual é o engodo? Agora que nós democratizamos a universidade, que nós colocamos as mulheres negras, os alunos negros, os pobres da classe trabalhadora para dentro, a gente sucateia e entrega para eles um serviço de baixa qualidade. Então, o que a gente precisa dizer é o seguinte, nós queremos que todos os brasileiros que estão na universidade pública gozem desse direito na sua plenitude. A gente não vai deixar ela ser sucateada agora que ela foi democratizada, como a gente não deixou no passado.

Então, tem uma coisa que é muito importante, é que, se tem algo que a gente está fazendo, é pensando nos alunos, pensando na qualidade do serviço, pensando na qualidade e no direito à educação pública no Brasil. Isso é muito importante. E não são só os alunos: é todo o público que se beneficia do trabalho que a gente faz. Eu nem vou começar a dizer tudo o que a universidade entrega, em termos de pesquisa, em termos de diagnóstico, em termos de política pública que foi pensada e desenhada nesse espaço. Então, é para tudo isso que nós estamos construindo essa batalha.

[00:42:32] Intervenção musical

 

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